[quote]Denunciar o alarmismo nuclear não implica em argumentar a favor da “bomba pacífica”, isto é, defender a bomba como instrumento para alcançar a paz, menos ainda não considerar a não-proliferação nuclear um importante desafio político-diplomático. Entretanto, pela reação desproporcional aos perigos atuais e pela descaracterização dos perigos do passado, os alarmistas nucleares provocam políticas ineficazes, que podem ameaçar a estabilidade internacional hoje e no futuro.[/quote]
O que é alarmismo nuclear
Todo alarmismo, seja nuclear, ambiental, político, econômico ou médico, fomenta o medo irracional. Esta forma de medo é o mais eficaz meio de controle social: sociedades amedrontadas reagem como manadas. Lembremo-nos da célebre historia do rato que provoca o “estouro” da manada de elefantes.
Em nome da redução de uma ameaça superestimada, mil vezes repetida pelo alarmismo, as lideranças podem agir livremente em busca de outros objetivos, alheios à redução da própria ameaça apregoada.
Evidentemente não se tem aqui a intenção de propagar uma visão cândida das armas nucleares. Seu potencial de causar inimaginável devastação está acima de qualquer controvérsia. Esta realidade requer que as comunidades técnica, política e diplomática internacionais pensem de forma mais clara e sóbria sobre as causas e consequências da proliferação nuclear.
O mundo era muito mais perigoso nas décadas que se seguiram ao fim da Segunda Guerra Mundial do que é hoje, e os desafios colocados pelas armas nucleares eram mais complexos. Existem importantes lições a serem apreendidas da história, principalmente porque os desafios atuais possuem raízes profundas no passado. Para que as políticas de não-proliferação tenham êxito, o entendimento da história é vital.
Entretanto, é muito difícil encontrar um analista da proliferação nuclear que não seja pessimista quanto ao futuro. Existe um “consenso” de que essa é a mais grave ameaça que a comunidade internacional enfrenta, sendo hoje pior do que nunca. Seriam, portanto, necessárias novas e mais efetivas políticas para enfrentar o problema.
Essa corrente considera que esse “terrível mundo novo”, complexo e perigoso, pois baseado numa ordem multipolar, é muito pior que “velhos bons tempos” da Mútua Destruição Assegurada (MAD*) entre EUA e URSS. Tais avaliações são superestimadas e, em alguns casos, simplesmente erradas, decorrendo de um débil ou tendencioso entendimento da história. Essa visão, chamada de “Alarmismo Nuclear”, transcende diferenças ideológicas, sendo praticada por todo o espectro político-ideológico.
Seria razoável aceitar o alarmismo nuclear como “verdade incontestável” ou como fato “cientificamente comprovado”? Acredito que a resposta é não: a argumentação de seus promotores é superestimada e, em alguns casos, simplesmente errada, decorrendo de um débil entendimento da história da proliferação nuclear, sendo baseada em quatro mitos.
Os mitos do alarmismo nuclear
O primeiro mito é que as ameaças nucleares de hoje são novas e mais perigosas que as do passado, o que não suporta uma análise simples: julgar que as crises atuais de Iran e Coreia do Norte seriam mais graves e ameaçadoras para a humanidade do que crises do passado da Guerra Fria, como a dos mísseis de Cuba, do bloqueio de Berlin e a Guerra da Coréia, por exemplo, beira o surrealismo.
O segundo mito é que, diferentemente de hoje, as armas nucleares estabilizaram a política internacional durante a Guerra Fria. A análise histórica, neste caso, mostra contradições: há situações em que se poderia considerar que elas tiveram efeito estabilizador, mas na maioria das situações elas foram o próprio fator de desestabilização.
O terceiro mito mescla a história da corrida armamentista nuclear com a competição ideológica e geopolítica entre os EUA e URSS, criando um retrato super simplificado e distorcido da Guerra Fria.
O quarto mito é que a rivalidade militar bipolar durante a Guerra Fria era a única motivação da proliferação nuclear nas décadas que se seguiram ao fim da Segunda Guerra Mundial. Ao propagar esse mito, os alarmistas nucleares ignoram ou subestimam outras importantes motivações tais como a descolonização, questões sobre o status político da Alemanha pós-guerra e problemas de segurança regional.
Denunciar o alarmismo nuclear certamente não implica em argumentar a favor da “bomba pacífica”, isto é, defender a bomba como instrumento para alcançar a paz, o que seria aceitar o segundo mito, menos ainda não considerar a não-proliferação nuclear um importante desafio político-diplomático.
Entretanto, pela reação desproporcional aos perigos atuais e pela descaracterização dos perigos do passado, os alarmistas nucleares provocam políticas ineficazes, que podem ameaçar a estabilidade internacional hoje e no futuro.
O caso do Irã
Caso típico desta postura pode ser verificado pelos alarmes soados por diversos analistas que têm repetidamente declarado que o Irã estaria hoje (julho de 2010) a um passo de obter armas nucleares. Na verdade, é muito mais difícil construir uma arma nuclear do que a maioria dos especialistas supõe.
Por exemplo, em 27 de junho de 2010, o Diretor da CIA, Leon Panetta, estimou que o Irã levaria cerca de dois anos para construir uma bomba nuclear, se tomar a decisão de fazê-la. O Wall Street Journal, com base em sua declaração, alertou em 29 de junho seguinte que “o Irã está a apenas dois anos de uma bomba atômica, que poderia atingir Israel, Europa e além”[1].
A estimativa de Panetta inclina-se para o pior cenário, no qual o processo de produção de armas transcorreria de forma perfeita. As melhores avaliações de peritos indicam, entretanto, que seria realmente necessário ao Irã de três a cinco anos para desenvolver uma arma nuclear.
Veja como esse processo provavelmente se desdobra e as razões pelas quais não é provável que aconteça dentro do cronograma que os alarmistas querem fazer crer.
Etapa 1: Decisão
O Irã está certamente se movendo no sentido de adquirir a tecnologia que lhe permita fazer uma arma, mas não é claro se a decisão de produzir armas nucleares já foi tomada. O regime islâmico deve ponderar os custos políticos e de segurança para desenvolver armas nucleares antes de avançar neste sentido.
O Irã pode decidir, como o Japão e a Alemanha, que suas necessidades são melhor atendidas por aproximar-se do limiar da construção de uma bomba (adquirir a capacidade técnica e know-how), mas na verdade não cruzar esta linha e correr o risco de uma corrida armamentista entre os seus rivais ou um pré-ataque preventivo dos Estados Unidos ou Israel.
Ninguém sabe se o Irã já tomou esta decisão, sendo de seu interesse estratégico manter essa ambiguidade como fator de dissuasão.
Etapa dois: Obtenção do material físsil
Se o Irã tomar a decisão, ele deverá acumular uma quantidade suficiente do elemento indispensável para o núcleo da bomba: urânio altamente enriquecido (Highly Enriched Uranium – HEU) ou plutônio weapon grade (com baixos teores de isótopos superiores ao Pu-239).
O Irã está buscando caminhos para a produção de ambos, embora sua capacidade de enriquecimento de urânio esteja muito à frente do seu programa de reprocessamento de combustível nuclear de reatores de pesquisa para extração de plutônio.
Existem duas formas para o Irã produzir urânio altamente enriquecido, isto é, o urânio com mais de 90% do isótopo U-235.
A primeira seria usando suas centrífugas na usina de Natanz. A partir do urânio natural, composto de 0,07% de U-235, este material seria enriquecido até o nível requerido para armas. Esta seria uma flagrante violação das suas obrigações decorrentes do Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP).
Caso o Irã opte por esse caminho, teria de retirar-se do Tratado e expulsar os inspetores internacionais. Operando Natanz a plena carga, o Irã levaria cerca de um ano para enriquecer urânio suficiente para uma bomba.
Mais provavelmente, o Irã poderia continuar o seu caminho atual de aumentar seu estoque de urânio de baixo enriquecimento (até 3-5% U-235), afirmando que seria para fins pacíficos. Em algum momento, o Irã poderia, então, abandonar o TNP, expulsar os inspetores, e levar esse urânio de volta às centrífugas para enriquecê-lo a níveis mais elevados. Por esse caminho, poderia ser produzido o equivalente a uma bomba de urânio altamente enriquecido em três a seis meses[2]. A estima de Panetta[3] considera que, usando este caminho, o Irã poderia ter HEU suficiente para construir duas bombas em um ano.
Ainda assim, dificuldades tecnológicas podem prolongar o processo: O número de centrífugas iranianas em operação tem diminuído desde meados de 2009[4]. Embora o Irã continue a instalar centrífugas, quase 1.000 centrífugas a menos do que em maio de 2009 estavam em operação em julho 2010[5].
Recentemente, o Irã tem enriquecido Urânio a cerca de 20%, supostamente para ser usado como combustível para seu reator de pesquisas. Se o Irã acumular suficiente urânio enriquecido a 20%, sabendo-se que já havia produzido 11 kg ao final de maio de 2010[6], o uso desse material permitira produzir urânio altamente enriquecido ao nível adequado para uma arma ainda mais rapidamente.
Em todo caso, seriam necessários seis meses adicionais para transformar o urânio altamente enriquecido de sua forma de hexafluoreto, usada para o enriquecimento, para a forma metálica, destinada ao uso em uma bomba[7].
Etapa 3: Artefato
O caminho técnico para uma bomba não termina com a obtenção de HEU. Produzir um artefato nuclear rudimentar levaria mais um ano, assumindo que o Irã tem um projeto de engenharia adequado e os necessários componentes para construí-lo. Entretanto, o salto para uma ogiva nuclear sofisticada, que poderia ser usado na cabeça de combate de um míssil, poderia requerer um tempo adicional de dois a cinco anos.
Durante este período, o Irã precisaria fabricar os componentes não-nucleares do artefato, testá-los e aperfeiçoá-los para, finalmente, realizar um ou mais testes nucleares explosivos. As soluções dos problemas técnicos para o desenvolvimento dos componentes não nucleares poderiam passar despercebidas, mas o sensoriamento global estabelecido pela CTBTO[8] seria capaz de detectar qualquer teste de explosivo, certamente levando a um enorme recrudescimento da pressão sobre o Irã. Isto significa que uma arma taticamente útil tomaria outro 2 ou 3 anos, provavelmente até cinco[9].
Etapa 4: Miniaturização
O Irã poderia produzir um artefato rudimentar muito pesado, transportável por caminhão, cerca de um ano após de ter produzido o HEU necessário. Este artefato, entretanto, apesar de útil como uma arma, seria demasiado grande e pesado para embarcar em aviões ou mísseis de suas Forças Armadas, que não podem carregar uma arma que pese mais de 1.000 kg.
Uma arma menor, mais sofisticada, seria necessária se o Irã pretende desenvolver uma dissuasão nuclear confiável. Entretanto, não é possível “encolher” um artefato para a forma de uma ogiva nuclear, resistente às condições operacionais adversas, da noite para o dia.
A miniaturização e militarização de uma ogiva nuclear é provavelmente o desafio mais difícil que qualquer candidato à proliferação tem que enfrentar[10]. As ogivas embarcadas nos primeiros Mísseis Balísticos Intercontinentais (ICBM) estavam na faixa de 4.000-5.000 kg. Isso foi o melhor que americanos e soviéticos puderam fazer quando começaram. Só depois de seis a oito anos de intensos esforços de pesquisa, desenvolvimento e engenharia foi possível reduzir as ogivas a menos de 1.000 kg.
Etapa 5: Lançamento
O Irã também teria que desenvolver um Veículo de Reentrada (Reentry Vehicle – RV) para a sua ogiva. Um míssil balístico segue uma trajetória parabólica. Após a ascensão propelida por motores e um curto trajeto através do espaço exterior, o RV, liberado dos motores, deve reentrar na atmosfera para atingir seu alvo.
O RV deve, portanto, ser resistente o suficiente para sobreviver a condições extremas, que ele encontra ao longo da trajetória de voo, e desenvolver esta tecnologia não é tarefa fácil. Uma coisa é testar uma arma nuclear em condições cuidadosamente controladas. Outra, bem diferente, é construir uma arma que possa resistir a fortes vibrações, às forças dinâmicas de aceleração e desaceleração (Elevadas Forças G) e as altas temperaturas do lançamento e de reentrada na atmosfera. O Irã não tem demonstrado possuir capacidade de construir esse RV até o momento.
Etapa 6: Alcance
Atualmente, os mísseis balísticos iranianos podem atingir alvos a não mais de 1.600 km de suas fronteiras, carregando cabeças de combate que não pesam mais de 750 kg. Isso seria suficiente apenas para atingir os vizinhos mais próximos.
O Irã não seria capaz de desenvolver mísseis de longo alcance capazes de atingir a Europa Ocidental, a cerca de 3700 km de distância, antes de 2014 ou 2015[11]. Para desenvolver um míssil capaz de atingir os Estados Unidos, que está a 9.000 km de distância, seria necessário primeiro testar um míssil de alcance intermediário. Ou seja, um míssil iraniano com alcance intercontinental seria algo somente imaginável no horizonte de pelo menos uma década de desenvolvimento.
O Irã poderia acelerar este cronograma se receber ajuda externa. Com tal ajuda, seria possível desenvolver um Míssil Balístico Intercontinental capaz de atingir os Estados Unidos até 2015[12]. No entanto, o MTCR[13], os contínuos esforços para isolar o Irã[14] e o trabalho diplomático junto às potenciais fontes de ajuda externa, incluindo Rússia e China, para restringir a disseminação de tecnologias relacionadas a armas nucleares e mísseis reduz em muito a probabilidade de que essa assistência venha a se concretizar.
Com um cronograma nuclear do Irã tão fluido, é crucial para não reagir em pânico com base numa falsa sensação de urgência. Uma resposta militar, em particular, poderia ter graves consequências, ao não oferecer uma solução de longo prazo para o problema, já que faria nada mais do que ganhar tempo. As estimativas são que um ataque as suas instalações nucleares atrasaria o Irã em 1 a 3 anos[15], além de ser um forte incentivo a tomar a decisão inicial e a vencer as etapas seguintes acima descrita, de ter um efeito incrivelmente desestabilizador para toda a região e de aumentar o apoio político interno para o regime atual, até mesmo no seio do Movimento Verde, de oposição[16].
Então, da próxima vez que ouvirmos um comentarista dizendo que o Irã está à beira de conseguir armas nucleares, não entremos em pânico. Entretanto, como na história de “Pedro e o Lobo”, eventualmente os especialistas poderão um dia vir a estar certos. Por enquanto, porém, o Irã tem um longo e penoso caminho a percorrer: não se esquecer disso é a melhor maneira de desenvolver uma resposta comedida às ambições nucleares da República Islâmica.
Conclusões
O alarmismo nuclear, portanto, não é uma estratégia: as ameaças não são novas ou mais perigosas do que as do passado e ignorar a continuidade e as lições do passado é uma postura irresponsável, ou com segundas intenções. Entendendo a história da proliferação e, em particular, como e porque a humanidade escapou da calamidade durante tempos muito mais perigosos face aos implacáveis e poderosos adversários da Guerra Fria, é mais importante do que nunca.
A adoção de posturas alinhadas com o alarmismo nuclear por políticos de alto nível, evidentemente bem preparados e bem informados, induz a suspeita de que existem outros objetivos e interesses “pegando carona” na não-proliferação.
A evidente e não explicada contradição entre a carta de Obama a Lula antes de sua viagem a Teheran e a reação da secretária de estado americana Hilary Clinton à declaração conjunta Brasil–Turquia–Irã é uma clara evidência de que a disputa entre “falcões”, militantes do alarmismo nuclear que levaram à invasão do Iraque, e “pombas”, cuja expectativa de ascensão ao poder propiciou o Prêmio Nobel da Paz ao Presidente americano, continua muito viva.
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* Mutual Assured Destruction, doutrina estratégica desenvolvida pelos EUA e compartilhada pela URSS durante a Guerra Fria.
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Imagem (Fonte):
Wikipedia
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Avaliação de Leonam dos Santos Guimarães: Doutor em Engenharia; Diretor de Planejamento, Gestão e Meio Ambiente da Eletrobrás Eletronuclear e membro do Grupo Permanente de Assessoria do Diretor-Geral da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA).
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Fontes consultadas:
[1] Ver:
http://online.wsj.com/article/SB10001424052748703964104575335242943136462.html
[2] Ver “Joint Threat Assessment”:
http://docs.ewi.info/JTA.pdf
[3] Ver:
http://abcnews.go.com/ThisWeek/week-transcript-panetta/story?id=11025299&page=3
[4] Ver “Institute for Science and International Security”:
http://isis-online.org/isis-reports/detail/irans-gas-centrifuge-program-taking-stock/8
[5] Ver “Institute for Science and International Security”:
http://isis-online.org/uploads/isis-reports/images/trends-4.jpg
[6] Ver “Institute for Science and International Security”:
http://isis-online.org/isis-reports/detail/taking-stock-of-the-production-of-19.75-percent-uranium-at-the-pfep/
[7] Ver “Joint Threat Assessment”:
http://docs.ewi.info/JTA.pdf
[8] Ver “Comprehensive Nuclear-Test-Ban Treaty Organization”:
http://www.ctbto.org/
[9] Ver “Vice chairman of the Joint Chiefs of Staff, Gen. James Cartwright”:
http://armed-services.senate.gov/testimony.cfm?wit_id=9319&id=4506
[10] Ver “Gen. Eugene Habiger”
http://carnegieendowment.org/files/Habiger.pdf
[11] Ver “International Institute for Strategic Studies”:
http://www.iiss.org/publications/strategic-dossiers/irans-ballistic-missile-capabilities/
[12] Ver:
http://www.armscontrolwonk.com/2707/iranian-icbm-by-2015
[13] Ver “Missile Technology Control Regime”:
http://www.mtcr.info/
[14] Ver:
http://wonkroom.thinkprogress.org/2010/06/07/isolating-iran-cannot-be-done-unilaterally/
[15] Ver “Secretário de Defesa americano Robert Gates em Setembro de 2009”:
http://edition.cnn.com/2009/POLITICS/09/27/us.iran/index.html
[16] Ver “Joint Chiefs of Staff, Alte. Mike Mullen”:
http://www.washingtonpost.com/wp-dyn/content/article/2010/06/28/AR2010062805241.html