Nos últimos dois meses, a governabilidade no Quênia tem indicado pontos de instabilidade, tendo em vista que, mesmo a quatro anos de uma nova eleição, a oposição já force diálogos com o atual partido no poder. Além dessa pressão, há uma conjuntura que também envolve, por parte da oposição, a organização de comícios por todo o país e a incitação da violência entre grupos étnicos e grupos religiosos[1].
A indefinição sobre o resultado dessa agitação política só será conhecida após o comício organizado pela Coalizão por Reformas e Democracia (CORD), ontem, segunda-feira, 7 de julho. A data não foi por acaso, pois ela relembra um fato histórico do país: o Saba Saba Day. No dia 7 de julho de 1990, cidadãos cansados com o regime político queniano foram às ruas lutar por um país melhor e mais livre, ocorrendo confrontos entre a população e a tropa de choque[2]. Não há ainda certeza sobre os efeitos do comício da CORD, se a população seguirá o rumo ou se haverá alguma mudança a partir de hoje[3].
A situação da governança no país é discutida no Kenya Economic Report 2013. De acordo com o relatório, antes da sanção da Constituição do Quênia de 2010, o poder judiciário era o mais fraco, entre os três poderes. Não só o judiciário carecia de independência, como, também, ele era constantemente vulnerável à manipulação e interferência do Executivo. A baixa performance do país em indicadores como o império da lei e o controle da corrupção sugerem o não cumprimento ou a aplicação seletiva de leis no país[4]. Para trazer luz à atual conjuntura, o primeiro passo consiste em esclarecer a dinâmica dos atores envolvidos na política queniana através da história.
O atual embate tem dois atores principais: o atual presidente, Uhuru Kenyatta, e o ex-presidente e líder do partido CORD, Raila Odinga. Entretanto, entender e a trajetória da figura de Raila Odinga traz mais luz para compreender as apelações aos comícios e ao Saba Saba Day. Curiosamente, ambos possuem laços sanguíneos com os primeiros tomadores de decisões no país.
O atual Presidente, Uhuru Kenyatta, é filho do primeiro Presidente queniano, Jomo Kenyatta, que governou o país de 1964 a 1978. O líder da oposição, Raila Odinga, é filho do primeiro Vice-Presidente do país, Jaramogi Oginga Odinga. Como Vice, Jaramogi Odinga não concordou com as políticas implantadas por Jomo Kenyatta, o que fez Odinga abandonar o posto, sair do partido Kenya African Union (KAU) e fundar o Kenya People’s Union (KPU)[5].
Após a morte de Jomo Kenyatta, a Presidência foi passada para o vice-presidente Daniel arap Moi, que governou o país de 1979 a 1992. Contudo, cabe destacar que o país foi um estado unipartidário até 1992. Assim, não havia eleições presidenciais durante a administração de Jomo Kenyatta e Daniel arap Moi. Em meio ao monopólio partidário, Raila inicia sua participação política, o que o leva diversas vezes à prisão e à busca de asilo. Em 1982, Raila – como é mais conhecido – cumpriu prisão domiciliar por sete meses após ser suspeito de colaborar com conspiradores em uma tentativa fracassada de Golpe de Estado contra o presidente Moi. Posteriormente, Raila foi acusado de traição e ficou seis anos preso, voltando em fevereiro de 1988. Entretanto, em setembro do mesmo ano, Raila se envolveu com o Movimento Revolucionário do Quênia, na defesa dos direitos humanos e na busca por um sistema multipartidário. Em 1991, ele viajou para a Noruega, com alegações de que o governo queria assassiná-lo.
Em paralelo à vida política de Raila, o seu pai, Jaramogi Oginga Odinga lutava desde 1982 para registrar outro partido, plano que foi frustrado diante da Emenda Constitucional que consolidou o país como um Estado unipartidário de jure. Apesar das dificuldades, Odinga fundou o Fórum para a Restauração da Democracia (FORD), o que desencadeou uma série de eventos, tendo como principal resultado a abertura para partidos opositores[6]. Com a abertura para um sistema multipartidário em 1992, Raila retornou para o país e assumiu o posto de diretor do FORD, liderado pelo seu pai.
Passando a atuar no centro da política, Raila deixou o FORD em 1996, entrou no National Development Party(NDP) e, em 1997, candidatou-se às eleições presidenciais. Após ser o terceiro mais votado e ter ficado atrás de Daniel arap Moi, reeleito, e Mwai Kibaki, Raila atuou na fusão dos partidos NDP e do partido de Moi, o Kenya African National Union (KANU). Nessas condições, atuou como Ministro de Energia no Governo Moi.
Para manter o partido no poder e impedido de tentar a reeleição pela terceira vez, Moi endossa o nome de Uhuru Kenyatta para representar o partido nas eleições de 2002. Além disso, Moi pediu publicamente o apoio de Raila, através do nome de Kenyatta. Raila e seus aliados declararam que Kenyatta era um candidato com pouca experiência e sem qualidades de liderança. Em meio aos desentendimentos, reuniu seus parceiros e, junto com a National Alliance Party of Kenya(NAK) de Mwai Kibaki, formou a coalizão National Rainbow Coalition (NARC). A coalizão obteve 62% dos votos e pôs fim ao monopólio de 39 anos do KANU no governo, assim como decretou a derrota de Kenyatta nas eleições.
Em 2005, após perder a votação para a mudança da Constituição, Mwai Kibaki, então Presidente, demitiu todo o Gabinete, inclusive Raila e toda a sua equipe. Isso levou Raila à criação do Orange Democratic Movement (ODM). Em outubro de 2007, lançou sua campanha presidencial contra Mwai Kibaki, conseguindo levar 50 mil pessoas às ruas. Apesar da grande popularidade de Raila, a comissão eleitoral declarou Mwai Kibaki o vencedor das eleições naquele ano. Isso gerou um caos no país, pois havia fortes indícios de irregularidades, compra de votos e manipulações. Tão logo o resultado saiu, muitos cidadãos foram às ruas, gerando um conflito étnico, isto é, guerras entre tribos do país. Isto forçou o Governo recém-eleito a adotar a Lei Marcial no mesmo dia da divulgação do resultado[7].
Com um cenário de crise pós-eleições e, aproximadamente, 1.500 mortos, Kibaki e Raila negociaram formar um grande Governo de Coalizão, com cada um podendo nomear um deputy prime minister e dividindo igualmente os ministérios para os dois partidos[8]. Dessa forma, em abril de 2008, Raila Odinga se tornou o Primeiro Ministro da República do Quênia através do governo de coalizão.
Após as eleições de Uhuro Kenyatta em 2013, Raila tem se mostrado confiante de que, como Presidente do povo, é possível forçar uma nova coalizão. Como já retratado anteriormente, há indícios de que os comícios organizados pela oposição gerem hostilidades na população, principalmente pela figura de Raila Odinga[8]. Diante de experiências coletadas historicamente, a participação de Raila em qualquer estímulo ao combate da baixa performance governamental, ou até mesmo a falta de legitimidade de governantes, merece a atenção.
As observações apontam que o histórico de Raila revela a intensidade que seus atos tomam quando combinados com tentativas de golpes e apoio da população. O comício no Saba Saba Day pode sensibilizar alguns quenianos de que é possível obter mais do Governo; pode, inclusive, suscitar a busca por mudanças de forma mais ávida do que a convencional. Em suma, a história pode não se repetir, mas ela sempre oferece importantes insumos para compreender as dinâmicas e as complexidades dos atores ao longo do tempo e do espaço.
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Imagem (Fonte):
http://sphotos-f.ak.fbcdn.net/hphotos-ak-snc7/421974_10151316404306127_1603278897_n.jpg
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Fontes consultadas:
[1] Ver “CEIRI NWESPAPER”:
https://ceiri.news/comicios-discursos-e-preocupacoes-quenia/#4384099750313908
Ver também:
https://ceiri.news/choque-de-coalizoes-quatro-anos-das-eleicoes-quenia/#6725482940673828
[2] Ver “Moderate Kenya”:
http://moderatekenyan.wordpress.com/2012/07/07/saba-saba/
[3] Ver “Daily Nation”:
[4] Ver “Relatório ‘Kenya Economic Indicators 2013’ do Kenya Institute for Public Policy Research Analysis (KIPPRA)”. Disponível em:
[5] Sobre a história de Uhuru Kenyata:
Ver: http://softkenya.com/uhurukenyatta/
Ver: http://www.africa-confidential.com/whos-who-profile/id/261/Raila_Odinga
Ver: http://kalenjininfocentre.blogspot.com.br/2011/07/early-life-and-his-political-life.html
Sobre a história de Raila Odinga:
Ver: http://softkenya.com/uhurukenyatta/
[6] Ver “South African History Online”:
http://www.sahistory.org.za/dated-event/jaramogi-oginga-odinga-kenyan-independence-leader-dies
Ver também “Safari Africa”:
[7] Ver “New York Times – Africa”:
http://www.nytimes.com/2007/12/31/world/africa/31kenya.html?pagewanted=all&_r=0
Ver também o Relatório “Elections in Kenya in 2007, do Department for International Development(DFID)” e o Relatório do UK AID. Disponível em:
[8] Ver “BBC News”: