Pela primeira vez, em 70 anos de história, a Organização das Nações Unidas (ONU) preparará uma Cúpula Humanitária Mundial. A razão é simples: o mundo está enfrentando a maior crise humanitária desde a Segunda Guerra Mundial. De acordo com o Escritório das Nações Unidas para Assuntos Humanitários (OCHA), a crise na Síria – já no quinto ano – continua a impulsionar o maior êxodo de refugiados desde então. Mais de 830 mil refugiados e migrantes já foram para a Europa em 2015, para fugir da guerra. Cerca de 250 mil pessoas já foram mortas e mais de 1,2 milhão foram feriadas.
Nesse contexto, o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, convocou em 2012 a realização da Cúpula, quando o mundo começava a evidenciar o aumento da lacuna financeira para a assistência humanitária – entre o que era necessário e o que era arrecadado – e o aumento exponencial de refugiados ambientais e de cenários de guerra.
No tocante às finanças, a ONU arrecadou US$ 64 bilhões para o provimento da assistência humanitária no período 2005-2014. Contudo, o valor não foi suficiente para atender a todos os demandantes, restando um acumulado de US$ 35,4 bilhões que não foram arrecadados (unmet needs), comprometendo o atendimento a milhões de pessoas.

Fonte: Restoring Humanity: global voices calling for action: http://synthesisreport.worldhumanitariansummit.org/
Em 2016, a OCHA estuda a necessidade de US$ 20,1 bilhões para responder às necessidades de 87,6 milhões de pessoas em 37 países. Destacam-se as assistências humanitárias para Síria (US$ 8 bilhões), Iêmen (US$ 1,6 bilhão), Etiópia (US$ 1,4 bilhão) e Sudão do Sul (US$ 1,9 bilhão).
Para minimizar os efeitos dos conflitos, a Cúpula adotará o discurso “Humanidade: uma responsabilidade compartilhada”, mediante cinco grandes responsabilidades: 1) liderança política para prevenir e cessar conflitos; 2) defender as normas que assegurem a humanidade; 3) deixar ninguém para trás; 4) mudar a vida das pessoas – prestando ajuda para diminuir as necessidades; e 5) investir na humanidade.
Para a ONU, apesar das causas diferentes e complexas em cada conflito, o resultado é usualmente parecido: eles surgem em locais que eram considerados seguros, ganham intensidade e apresentam um retrocesso quando parecia estar resolvido. Além disso, um terço dos atuais conflitos incluem atores externos que apoiam um ou mais partes do conflito, tornando-os mais internacionalizados, mortais e prolongados. Por essas razões, dois terços das operações de manutenção da paz da ONU e quase 90% do pessoal da Organização, envolvidos em missões políticas especiais, estão trabalhando dentro ou com os países em conflitos de alta intensidade. Na Cúpula, pretende-se fortalecer a demonstração de liderança política de forma decisiva, coerente e respeitando os prazos, sustentar o engajamento antes e após as crises e investir em estabilidade ao longo do tempo.
A segunda responsabilidade ressalta a importância de respeitar o direito internacional e os limites da guerra. Atualmente, vários civis estão sendo feridos e mortos deliberadamente; mulheres e meninas são abusadas e vendidas como escravas sexuais; jornalistas são detidos e assassinados; escolas, hospitais e igrejas são bombardeados. Nesse sentido, o relatório síntese já aponta o reforço dos ataques dirigidos a cidadãos, os bombardeios às regiões habitacionais, bem como a necessidade à assistência médica aos feridos de guerra, a necessidade de reforço ao sistema de justiça global – como a Corte Criminal Internacional – e a necessidade do uso do Conselho de Segurança da ONU.
A terceira responsabilidade representa uma ponte entre os assuntos humanitários e a Agenda 2030, referente aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Com o discurso de “Não deixar ninguém para trás”, esse comprometimento significa alcançar todos aqueles que se encontram em situações de conflito, desastres, vulnerabilidade e risco. Nesse intuito, a Cúpula reforçará a inclusão de jovens como agentes de transformação positiva em suas comunidades, o apoio à educação de crianças e jovens – principalmente os que se refugiaram –, o empoderamento de mulheres e crianças e o comprometimento com as vulnerabilidades e as oportunidades legais para os migrantes.
A quarta responsabilidade visa à mudança na vida das pessoas, ao reforçar o papel de sistemas locais, a antecipação das crises e o corte da dicotomia humanitarismo-desenvolvimento. A operacionalização desse item consiste na ratificação dos espaços locais e nacionais como principais agentes da mudança, a construção de resiliência pelas comunidades locais, a antecipação das crises mediante o emprego de análises de riscos e o emprego conjunto de esforços que ora colaboram para as causas humanitárias (emergenciais), ora para a provisão de bens públicos para o desenvolvimento social e econômico no médio e longo prazos.
A implementação das quatro responsabilidades citadas acima requer o comprometimento ético, político e financeiro da quinta, ou seja, “investir na humanidade”. Em termos brutos, a atual arrecadação para a cooperação humanitária é doze vezes maior do que em 2000, quando a OCHA arrecadou US$ 2 bilhões. Entretanto, o investimento não pode ser resumido ao aspecto financeiro, mas do próprio sistema. No relatório “Too importante to fail – addressing the humanitarian financing gap” afirma-se que a atual cooperação humanitária reflete os fracassos de um sistema mais amplo, ao conviver paradoxalmente com um mundo mais rico e próspero de um lado e um mundo mais frágil e com inúmeros choques exógenos causados por crises financeiras, desastres naturais e grupos extremistas. Além disso, se mantiver a tendência, ao fim da Agenda 2030, o custo da assistência humanitária saltará para US$ 50 bilhões.
Nesse sentido, a Cúpula debaterá assuntos como o aumento do custo-eficiência, o reforço do papel de agentes locais nas crises humanitárias e a realocação de recursos – anteriormente destinados para a gestão de crises – para a prevenção de crises e a construção de resiliência nas comunidades.
Diante da agenda compartilhada para o evento e do engajamento da sociedade civil por meio de discussões online e consultas públicas a pesquisadores, jornalistas e ativistas, a Cúpula revelará três aspectos centrais para o curto e médio prazo da cooperação humanitária. Em primeiro lugar, não há dúvidas de que a atual crise tem afetado diretamente as políticas domésticas, comprometendo questões relacionadas à circulação de pessoas, a defesa dos postos de trabalhos e o xenofobismo. Portanto, a participação dos Chefes de Estado e de Governo evidenciará a importância relativa das causas humanitárias para os respectivos países. Considerando a gravidade da situação, a Cúpula tem estimulado a comunidade online a convocar seus líderes nacionais para se fazer presente no evento.
Em segundo lugar, a Cúpula colocará em xeque o atual sistema humanitário internacional, no tocante à efetividade de suas ações e à necessidade de rever conceitos. Temas como resiliência, custo-eficiência, prevenção de desastres e empoderamento de agentes locais estão no centro do debate, cabendo às autoridades e líderes definirem o passo-a-passo dessas abordagens. Contudo, essas novas ações deverão ser acompanhadas nos próximos anos, de forma a garantir a aplicação das ideias e a solução dos atuais entraves logísticos e operacionais.
Por fim, o engajamento e a publicidade da Cúpula poderão atingir a opinião pública em temas delicados, amenizando as atuais polaridades existentes nos assuntos humanitários, tais como: a relação humanitarismo x desenvolvimento; a construção de muros x a livre circulação dos refugiados; e o respeito aos costumes dos refugiados x a adaptação às regras da nova sociedade.
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Imagem (Fonte):
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